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Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil (continuação)

Esse que o agasalhou era já de idade, e andava por galanteria, cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia seteado como São Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; e outros, de vermelhas; e outros de verdes. E uma daquelas moças era toda tingida de baixo a cima, daquela tintura e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha tão graciosa que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhe tais feições envergonhara, por não terem as suas como ela. Nenhum deles era fanado, mas todos assim como nós.

E com isto nos tornamos, e eles foram-se.

(...)

Ao domingo de Pascoela pela manhã, determinou o Capitão ir ouvir missa e sermão naquele ilhéu. E mandou a todos os capitães que se arranjassem nos batéis e fossem com ele. E assim foi feito. Mandou armar um pavilhão naquele ilhéu, e dentro levantar um altar mui bem arranjado. E ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Henrique, em voz entoada, e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que todos assistiram, a qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida por todos com muito prazer e devoção.Ali estava com o Capitão a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém, a qual esteve sempre bem alta, da parte do Evangelho.

Acabada a missa, desvestiu-se o padre e subiu a uma cadeira alta; e nós todos lançados por essa areia. E pregou uma solene e proveitosa pregação, da história evangélica; e no fim tratou da nossa vida, e do achamento desta terra, referindo-se à Cruz, sob cuja obediência viemos, que veio muito a propósito, e fez muita devoção.

Enquanto assistimos à missa e ao sermão, estaria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos, como a de ontem, com seus arcos e setas, e andava folgando. E olhando-nos, sentaram. E depois de acabada a missa, quando nós sentados atendíamos a pregação, levantaram-se muitos deles e tangeram corno ou buzina e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias -- duas ou três que lá tinham -- as quais não são feitas como as que eu vi; apenas são três traves, atadas juntas. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam, não se afastando quase nada da terra, só até onde podiam tomar pé.

Acabada a pregação encaminhou-se o Capitão, com todos nós, para os batéis, com nossa bandeira alta. Embarcamos e fomos indo todos em direção a terra para passarmos ao longo por onde eles estavam, indo na dianteira, por ordem do Capitão, Bartolomeu Dias em seu esquife, com um pau de uma almadia que lhes o mar levara, para o entregar a eles. E nós todos trás dele, a distância de um tiro de pedra.

(...)

Andava lá um que falava muito aos outros, que se afastassem. Mas não já que a mim me parecesse que lhe tinham respeito ou medo. Este que os assim andava afastando trazia seu arco e setas. Estava tinto de tintura vermelha pelos peitos e costas e pelos quadris, coxas e pernas até baixo, mas os vazios com a barriga e estômago eram de sua própria cor. E a tintura era tão vermelha que a água lha não comia nem desfazia. Antes, quando saía da água, era mais vermelho. (...)

Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e sermão, espraia muito a água e descobre muita areia e muito cascalho. Enquanto lá estávamos foram alguns buscar marisco e não no acharam. Mas acharam alguns camarões grossos e curtos, entre os quais vinha um muito grande e muito grosso; que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de berbigões e de amêijoas, mas não toparam com nenhuma peça inteira. E depois de termos comido vieram logo todos os capitães a esta nau, por ordem do Capitão-mor, com os quais ele se aportou; e eu na companhia. E perguntou a todos se nos parecia bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, para a melhor mandar descobrir e saber dela mais do que nós podíamos saber, por irmos na nossa viagem.

E entre muitas falas que sobre o caso se fizeram foi dito, por todos ou a maior parte, que seria muito bem. E nisto concordaram. E logo que a resolução foi tomada, perguntou mais, se seria bem tomar aqui por força um par destes homens para os mandar a Vossa Alteza, deixando aqui em lugar deles outros dois destes degredados.

(...)

Fomos todos nos batéis em terra, armados; e a bandeira conosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, para onde nós íamos; e, antes que chegássemos, pelo ensino que dantes tinham, puseram todos os arcos, e acenaram que saíssemos. Mas, tanto que os batéis puseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais ancho que um jogo de mancal. E tanto que desembarcamos, alguns dos nossos passaram logo o rio, e meteram-se entre eles. E alguns aguardavam; e outros se afastavam. Com tudo, a coisa era de maneira que todos andavam misturados. Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho, e por qualquer coisa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e andaram assim misturados com eles, que eles se esquivavam, e afastavam-se; e iam alguns para cima, onde outros estavam. E então o Capitão fez que o tomassem ao colo dois homens e passou o rio, e fez tornar a todos. A gente que ali estava não seria mais que aquela do costume. Mas logo que o Capitão chamou todos para trás, alguns se chegaram a ele, não por o reconhecerem por Senhor, mas porque a gente, nossa, já passava para aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas, daquelas já ditas, e resgatavam-nas por qualquer coisa, de tal maneira que os nossos levavam dali para as naus muitos arcos, e setas e contas.

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Como referenciar: "Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o achamento do Brasil (continuação)" em Só Literatura. Virtuous Tecnologia da Informação, 2007-2024. Consultado em 20/04/2024 às 02:46. Disponível na Internet em http://www.soliteratura.com.br/biblioteca_virtual/biblioteca02c.php